"O ensaio da borboleta"

04/03/2023 22:27

 O ensaio da borboleta

        Um novo espaço teatral foi inaugurado no Centro da cidade do Rio de Janeiro no início de 2022, período em que muitos, aos poucos, começaram a se arriscar com a vida pública, devido à pandemia. A peça inicial, intitulada “O ensaio da borboleta”, teria início das19h e ia até às 22h, com um único ator, o que chamou a atenção do público, em geral.
        Todavia, o que se viu foi um entre-e-sai danado logo no primeiro dia. Uns saíam após dez minutos; os mais esforçados, após quarenta. Apesar de curioso e passar em frente ao local sempre, só pude no penúltimo dia.
        Na entrada, uma desconhecida me alertou:
        – Vai perder seu tempo, moço!
        Fiz gesto como quem pergunta o porquê, e a mulher fez tipo uma careta de criança manhosa quando entra em sala de aula sozinha pela primeira vez.
        Um senhor duns oitenta anos que, na exata hora, saía do teatro, confirmou-me o que a outra me dissera. Arregalou a vista e simulou um vômito. Ainda assim, fiz questão de entrar e averiguar o boato por conta própria. No fundo, intuía uma incoerência entre a reação do público e o anúncio em questão. Como teriam a pachorra de oferecer uma porcaria a quem por tanto tempo esteve confinado em seus lares! Pior: uma peça longa e inaugural, no centro duma cidade de destaque, e com um cartaz enorme, ainda por cima. Por outro lado, não me seria surpreendente que a prefeitura, como de praxe, nos empurrasse qualquer lixo a fim de lucrar com “artes” de segunda categoria.
        Contudo, entrei sem grandes receios do porvir. Mas o que eu não queria mesmo era constatar que ninguém percebesse a violência do pouco caso com a população fluminense. Entrei e logo me deparei com o ator, de início. Ele estava de perfil, considerando o espaço por onde entrei. Logo, me plantei em frente a ele. Não havia cadeiras. Será que já sabiam que ninguém ficaria ali por tanto tempo e, por isso, nem se deram ao trabalho de pôr assentos na grande sala vazia? Ri-me por dentro nessa hora. Me plantei em frente ao "astro" e cruzei os braços pra ver bem de pertinho o que sairia de bom dali. Não era possível que eu me visse, mas sei que os meus olhos o fuzilavam. E a peça começou.
        Bem, já que não tinha muito pra dizer a respeito desse momento, devo, ao menos, contar-lhe sobre o ator. Não em vão, entretanto. Compreenda: eu voltei lá depois. Achei tudo um desaforo e precisava tirar a limpo essa história. O rapaz era belo, com os cabelos levemente encaracolados, em tom mel natural. O rosto mais parecia de um deus grego, tamanha a simetria. Os olhos eram claros e belos, porém me transmitiam a inexatidão dos limites entre o azul do céu ao se encontrar com o azul do mar em final de praia, tal qual a paisagem do alto do Costão de Itacoatiara, em Niterói. Quanto ao corpo, estava em perfeita ordem e beleza. As minúcias dos músculos podiam ser vistos quando, de maneira delicada, ele se movimentava. Ele era uma borboleta branca, com asas que se desgrudavam aos poucos da coluna, conforme o sujeito se mexia. Achei aquilo tudo muito ridículo, mas fiquei por ali mais de uma hora na expectativa duma grande virada de cena. Mas nada. A situação cada vez mais me enojava e enojava. Parecia uma cópia barata e mal feita da arte grega, se é que haja uma assim, de fato.
        Antes de me retirar dali, prestei atenção como ele usava de alguma técnica pra suspender o calcanhar, como uma borboleta tímida, a qual vai mas não vai alçar o voo da libertação. Só que a cara do indivíduo sequer tinha expressão. Logo me lembrei de um meme da personagem Bela, da saga “Crepúsculo”, o qual tanto circulou na internet por uma época aí. Em cada tira na montagem do meme, o rosto da atriz, que por nada variava de expressão, vinha com a legenda de várias emoções que não se externava em seu rosto enquanto atriz. Realmente, muito engraçado. De novo, ri por dentro, mas decidi ir embora duma vez, afinal, de certo aquilo não era uma comédia, mas o grande drama da cultura nacional. Foi o que pensei naquele momento. Na saída, um casal entrava. Evitei confrontá-los. Eles que tirassem as próprias conclusões, tal como eu fiz.
        Em casa, rolei algumas postagens da minha rede social. Tudo era muito sem graça e repetitivo. Nem notícia, nem série: nada me agradava. Ah, devo dizer que eu não era um sujeito solitário. Alguém vivia aqui, comigo. Só que não vale a pena entrar em detalhes, sobre essa pessoa, ainda que eu entenda que aquele que ora me lê possa estar pensando que eu estivesse em crise afetiva ou algo parecido. Mas não. Por isso, perceba, leitor, como, independente da vida mais preenchida que se possa ter, a gente sempre haverá de buscar a fuga no virtual; e isso, por favor, não se restringe a internet, algo tão contemporâneo. Ocorre que, de fato, buscava algo além do de costume. Sendo assim, só consegui rolar as postagens da minha time line, porém sem me focar em nenhuma. Por isso, a TV, o jornal, o rádio ou a série, nada disso me puxava à atenção. Nem mesmo o natural sono me convidava a desbravá-lo naquela noite de quinta-feira.
        Fui até a varanda, acendi um cigarro, que a fumaça haveria de alterar minimamente a realidade do entorno. E o que me veio à mente foi aquela maldita peça no centro da cidade. Puta merda! Era só o que me faltava: não tirar aquela borboleta da cabeça. Será que estou apaixonadinho? Será que você, que mal sabe quem eu sou, foi capaz de entender que estou sendo sarcástico hoje? Risos...
        Antes de me deitar e me deitar, confirmei comigo mesmo uma certeza: amanhã retornaria àquele teatro. Por sorte ou não, seria a última chance de entender a intenção da peça, se é que havia alguma.
        Assim, no dia seguinte, após a labuta, dei jeito de estar lá de novo. Pra minha surpresa, quem estava lá, antes mesmo de abrirem as cortinas? O velho e a mulher das caras torcidas, que me desmotivaram a assistir à peça ontem. Só que agora pareciam envergonhados perante a mim. A sorte foi que, de pronto, compreendi que ambos retornaram ao teatro pela mesma razão que a minha: a intriga interior que nos surgira. E nem demorou muito pra que o ambiente lotasse. Todos que saíram putos dali acabaram retornando; já os que pisavam pela primeira vez ali teriam alguma oportunidade, ao menos.
        Até que a sandice recomeçou: o ator centralizado, com o mesmo gesto de sempre, isto é, os movimentos sutis do corpo alçando o voo, enquanto as suas asas brancas de borboleta se abriam, aos poucos. E já sabia que as asas se abririam toda bem antes do desfecho por causa de ontem, que saí bem antes de terminar a peça. Então hoje, certamente, descobriríamos o que iria suceder depois, já que estávamos dispostos a permanecermos até o fim nesse local.
        Em meio ao tédio inicial, duma imagem quase estagnada, reparei na música de fundo. Creio que um som clássico, não conhecido, ao menos por mim, em volume quase imperceptível. A sensação que me deu foi de que o som parecia uma vibração duma asa se abrindo. Ou, talvez, a cena em si fizera com que eu sentisse a música desse jeito.
        Depois de um prolongado período de sutil movimento, o ator congelou por quase meia hora. Todos, discretamente nos entreolhamos como forma de buscar um entendimento sobre tal fato. No fundo, havia uma vergonha generalizada por falta de compreensão, ao mesmo tempo em que tinha uma raivosa desaprovação coletiva, que no atual momento fora absorvida pela paciência e a esperança de todos. Como disse, não havia assentos ali. Mesmo assim, era tão certo que estaríamos dispostos a aguardar o desfecho de pé. Seria uma peça que desafiava o nosso bom senso e o cansaço? De certo, não pagamos em dinheiro pra ver, já que era de graça, embora tenhamos pagado com três horas, que por suas vezes, são tão importantes pra nossa vida. Algo diferente de quem vende seu tempo a todo instante pra se obter condições mínimas de dignidade.
        Quase no desenlace, notei que o gesto do ator ficou um pouco mais intenso no palco. Agora o rapaz erguia a cabeça pra cima, assim como os braços. Depois, voltou à posição de inicial. Dessa vez, presenciamos lágrimas escorrendo por sua face de anjo-borboleta. Depois, a cortina foi fechada e, súbito, tudo tornou-se um breu, por cerca de três minutos. Em seguida, as luzes foram acesas em sua totalidade. A cortina foi reaberta, e o ator já não se encontrava mais no tablado. Supus que foi pra que ficasse claro ao público que o teatro havia sido encerrado. Caso alguém não tivesse compreendido, bastaria constatar no relógio que três horas já se foram. Sendo assim...
        Agora era a hora de o público nos encararmos. Dessa forma, compreendi, é claro. Pra minha surpresa, a face alheia era quase uma réplica de O grito, de Edvard Munch. O que acabávamos de vivenciar? O que teria acontecido com o nosso senso de realidade? Buscávamos uma resposta nos entreolhares. Começamos a rodear a sala e, com profundidade, nos olhávamos, à procura, a todo instante O clima tornou-se investigativo. Ninguém ficou sem ser visto. Ninguém deixou de olhar para o outro. Depois eu sei que tinha mais o que fazer da vida; porém, naquele instante, só sabia viver essa busca.
        Quando o idoso de outrora ousou tocar o rosto dum desconhecido, ou seja, a gente, todos os demais também tocamos um ao outro e, em meio ao pranto, nos abraçávamos um a um, de modo que ninguém tenha ficado de fora. O engraçado é que mal sei por que agimos assim. Tive a sensação, por muitas vezes, que um imitava o outro, ao mesmo tempo em que era uma atitude vinda de mim mesmo, quer dizer, de cada qual e as suas vontades.
        Enfim, depois de tanto tempo àquela experiência, um ousou abrir a porta de saída e, aos poucos, fomos saindo pra realidade. Não houve troca de palavras. Estávamos contaminados por um novo tipo de afeto. Na partida, já na rua, o entrosamento foi esfriando e cada um seguiu seu próprio rumo. Ainda alguns de nós olhávamos pra trás, mas agora já nos encontrávamos no palco do real e cada um, por si mesmo, se esquivava.
        No metrô, na estrada, à entrada de casa: algo se foi pra sempre, ao passo que algo novo me surgiu de repente. Fui à varanda. Acendi o cigarro a fim de me envolver entre nuvens. Só que o céu ameaça chover, e eu me ameacei a pensar na minha repentina morte. Ri de mim mesmo, após uma prazerosa tragada no fumo, e me disse, em pensamento: a vida é um grande ensaio...
(Kátia Surreal)