"Depois do original" (crônica)

14/07/2021 23:37

 

Niterói, 14 de julho de 2021.

 

Depois do original

(Kátia Surreal)

 

         Logo após o pecado original, a ordem do mundo passou a sofrer drásticas mudanças, assim é dito no livro. Depois do capital, o mundo teria de se transformar, segundo ecos fantasmagóricos, vindos de várias partes do mundo. Seja lá o que for, ninguém até hoje se pronunciou ainda a respeito da necessidade de se manter ou não os sete dias da semana.

         Assevero aqui que, de repente, seja necessário fazermos alterações no padrão de dias semanais para a construção de uma nova história da realidade. Aliás, é por isso que escrevo. Não estou louca, porém é claro que o mundo anda doente há muito tempo, e comigo não está sendo diferente. Vamos curar este planeta?  Para isso, é preciso atitude e, sobretudo, reflexões profundas. A minha ideia, é válido ressalvar, não brotou do nada. Não pretendo acabar com o sentido de semana, por exemplo. Pelo contrário, proponho que acrescentemos mais três dias, número este também cheio de simbolismo, para          que seja somado na semana. Portanto, teríamos dez dias. Vou explicar a razão disso nos parágrafos seguintes.

         A medida convencional em sete não tem dado conta de tantas tarefas e os sonhos da maioria das pessoas. Parece que não nos sobra tempo para nada, como se a vida estivesse passando muito depressa. Essa sensação é plural, e não gostaria de me limitar agora apenas na constatação de que o atual sistema consome todas as nossas horas na exploração do trabalho e, com ela, a nossa vitalidade. Pretendo aqui pensar em soluções profundas. Para começar, temos que internalizar, não somente decorar, que o tempo é uma construção humana para que tenhamos pontos de referências quanto às narrativas da história da humanidade.

         É difícil romper com uma lógica tão cristalizada, e o pior é que o mundo anda tão complicado, só que eu não quero, como diz a música, fazer tudo por você. Desejamos um mundo melhor, para todos, e a sensação de que tudo tem passado muito rápido perante tantas mazelas do cotidiano potencializa ainda mais a nossa angústia e, muitas vezes, a desesperança de muitos, o que é péssimo. Por isso, insisto: precisamos de três dias a mais na semana, ao menos, para que comecemos a grande transformação. Afirmo isso com segurança, porque é claro que, tão logo, a nova ordem terá de ser reformulada outra vez e constantemente. Sendo bem sincera, toda mudança é eterna.

         Ressalto que o novo calendário semanal que proponho não se baseia em uma doutrina religiosa; e, sim, de uma visão plástica da realidade, afinal, vivemos em um universo material, composto de obstáculos e lacunas a serem reconstruídos dia a dia. Enfim, eu não entendo tanto de física, porém insisto que precisamos de mais três dias para que realizemos tarefas e, assim, podermos iniciar a construção de um novo mundo. Dessa forma, vamos logo à apresentação das tarefas de um novo sistema.

         Bem, antes preciso dizer que, no princípio, era o verbo. Continuará sendo, certo? Não somente no sentido de “palavra”, mas também de “verbo” como majoritariamente conhecemos, isto é, no sentido de “ação”. É que o mundo precisa de palavras e ações concomitantemente. Entendamos isso como a práxis, ou seja, a interação das práticas humanas com a teoria em prol de um mundo melhor, mais bem estruturado. Experiências passadas, inclusive, vêm demonstrando como certas divisões ou globalizações têm deixado a vida partida, com cicatrizes profundas. Não desejamos um mundo em frangalhos. Em suma, é preciso que a teoria e a prática caminhem sempre de mãos dadas. Essa é a principal regra da nova ordem mundial. Todavia, agora chega de rodeios, e vamos logo às tarefas que deveremos cumprir ao longo dos dez dias semanais, nos quais, conforme você perceberá, haverá mais liberdade e, consequentemente, mais possibilidades de a felicidade se desprender da utopia.

         Dessa forma, no primeiro dia da semana, todos os camaradas do planeta terão um dia inteiro para o ócio criativo. Nessas horas, será possível fazer o que bem quiser, como dormir o dia inteiro, pensar no escuro, debaixo do cobertor, por horas seguidas. Se quiser, deite-se na rede ou simplesmente se dedique a produzir algo criativo, como um objeto artístico, por exemplo, ou veja filmes, exposições, escreva ou leia algo livremente. Esse será o dia de liberdade total.

         No segundo dia, será uma espécie de continuação do dia anterior, porém com algumas alterações. Todos deverão se aprofundar no estudo daquilo que realmente lhe apraz na vida. Portanto, será também um dia de liberdade, mas com a obrigação de se focar nos assuntos com os quais se identifiquem para um aprimoramento pessoal intenso.

         No terceiro dia, os camaradas deverão se dedicar às práticas esportivas, assim como qualquer outro tipo de exercício físico. Acrescentam-se aqui jogos de memória ou entretenimento. Por regra geral, a humanidade deverá reservar este dia para cuidar de sua saúde física, pois precisamos de um mundo sadio tanto quanto à mente como em relação ao corpo.

         No meio da semana, ou seja, no quarto dia, será extremamente necessário que nos foquemos na teoria política, uma vez que esta, conforme foi dito, é um ponto fundamental para mantermos a harmonia da sociedade. Assim, teremos no dia seguinte um amplo congresso político, para discutirmos e debatermos questões locais e mundiais, já que apenas dessa maneira seria possível construirmos um mundo organizado, democrático e justo, além de definirmos projetos vindouros com a participação ativa de grandes grupos sociais.

         Em relação ao sexto dia, é necessário informar antes de tudo que o mundo das relações de trabalho como vemos hoje, de alguma forma, apresentará alguns vestígios no novo sistema. Ao menos, no começo... Isso porque, nesse dia, o camarada terá a obrigação de cumprir com a sua especialidade técnica de trabalho. Entretanto, após as vinte e quatro horas de labuta, já na manhã seguinte teremos um dia de alegria. Será o momento em que as pessoas poderão se divertir com os seus amigos, companheiros, familiares etc. Será, então, o dia da comunicabilidade, afinal a socialização é essencial.

         No oitavo dia, todos deverão dar atenção exclusiva ao seu lar, às suas tarefas domésticas e à família, caso tenha uma em que haja vínculo e/ou convivência. Já no nono dia, os camaradas poderão se voltar às atividades culturais, como as artes e/ou a religião, caso tenham uma, bem como poderão se concentrar em outros mais costumes culturais.

         Por fim, teremos o último dia da semana, isto é, o décimo, o qual será conhecido como o dia do altruísmo. A ideia é que haja um momento de dedicação exclusiva ao próximo, e isso não deve se limitar às pessoas conhecidas, como familiares e amigos. Devemos nos envolver com a mazela de outrem, sem que recebamos algo em troca, sem que haja vínculos preestabelecidos, senão a intenção de elaborarmos um mundo em que se pratique a empatia e, sobretudo, o amor.

         Bem, agora que já apresentei as tarefas a serem cumpridas ao longo dos dez dias da semana, precisarei me pronunciar quanto a algumas observações gerais antes de finalizar o texto. Primeiramente, iniciarei pelo mais óbvio: nada é tão pronto e acabado assim. O determinismo é insuficiente perante a complexidade do universo humano. E se o mundo, ou parte dele, em meio ao estilo de vida “metódico” sofresse uma grande tragédia inesperada? Logicamente, teríamos de repensar outras formas de sobrevivermos mais uma vez. Aliás, as regras, meu caro, não são fechadas; as regras são apenas princípios norteadores para a organização mundial.

         Sei que, talvez, essas propostas soem um tanto utópica demais para uma mente nada ingênua como a sua. Eu sei disso. Mas é que, por outro lado, não podemos ficar na mesma situação o tempo todo. Temos que começar. É preciso repensar o mundo. Estou certa de que o novo calendário semanal está perfeito demais diante de tantos problemas que temos por aí. Contudo, espero que você compreenda, ao menos, que não é impossível nos desprendermos de velhos padrões sociais, que, aliás, já se encontram fadados ao fracasso há bastante tempo.

         Por último, devo confirmar que seja mentira mesmo essa história de que viemos ao mundo para padecermos com o suor do rosto. Sei que você sabe também, assim como eu, que é uma baita de uma mentira cabeluda e com verruga a ideia de que somente poucos são dignos de terem privilégios em detrimento da grande maioria da população. Por isso mesmo, repito e insisto: é preciso que repensemos o mundo!