Carta a Conceição Evaristo

07/05/2022 12:53

Niterói, 2 de maio de 2022.

 

Estimada Conceição Evaristo,

 

     Certa vez, um ruído de águas vazando do muro vizinho alcançou minhas orelhas. Só que não era apenas um cano rachado...
     À noite, novamente, o barulho de jato d’água. Cansada, entreguei-me a um belo sonho, em que me livrava de um afogamento. Uma correnteza de flores surgiu em meio ao oceano, quando me veio um clarão: era a rainha do mar.
    Acordei com o som d’água, que abafava o pranto duma mulher, do outro lado da parede. Esforcei-me em ouvi-la. Por sorte, até a coruja que piava, assim como um vento que passava, e toda a madrugada renderam-se ao absoluto do silêncio. Uma mulher chorava, e era espancada, e humilhada, e, rápido, compreendi tudo: o homem furara o cano mais cedo para que as lágrimas de sua mulher fossem abafadas.
    Breve, topei com essa vizinha, cheia de hematomas pelo corpo e óculos escuros. Fui até ela, que não quis se abrir comigo, de primeira. Ousei arrancar-lhe os óculos que velavam a tortura por que vinha passando. Chorosa, abraçou-me. Após muitos diálogos, topou denunciar o misógino e...
    Bem, gostaria de um desenlace feliz, mas as leis não têm sido eficientes e, por isso mesmo, devemos continuar lutando pelas mulheres. Que saibas: estou contigo nesta luta. Tal relato é ficcional, ainda que a violência contra mulher permaneça perversamente desenfreada na realidade nossa de cada dia. Já o vazamento d’água pelo muro, de fato, aconteceu, mas foi disso que me brotou a ideia para que iniciasse esta escrevivência.
    Disso, assevero que a tua palavra poética, Conceição Evaristo, é ferramenta real de luta pela causas femininas na contemporaneidade. Precisamos nos unir contra o feminicídio e quaisquer muros construídos para abafar as nossas vozes.
    Com esperança de dias melhores, despeço-me com carinho.
(Kátia Surreal)

Texto por: Kátia Surreal | @katiasurreal_
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Tema do mês de maio: Carta ao Artista