"A melancolia dum rubro lobo" (crônica): 19/11/2020

19/11/2020 18:54

A melancolia dum rubro lobo

 

Kátia Surreal

 

Despertei dum sonho amarelado, num início de manhã e/ou fim de tarde, não bem sei, só que atravessava de um clima gélido pra um morno clima de calor. Me apressei em lavar o rosto, porque eu sabia que gostaria de continuar sonhando. Vi, pelo espelho do banheiro, o basculante. Vi que o basculante é ou poderia ser muito mais do que um mero basculante. Eu não me inclinei pra trás a averiguar o que, no acaso, pude captar pelo espelho, que foi inventado pra que eu me visse e fizesse os reparos necessários pra um encaixe no padrão do plano habitual. Não. Eu continuei usando-o como suporte pra ver o que havia atrás de mim, flagrado bem assim, num instante distraído. Foi por essa via que, então, tudo começou...

Era uma vegetação que eu nunca vi antes. Algumas poucas árvores espaçadas e um predomínio forte de capins verde-claros, com as extremidades ressecadas. Algo se mexia inquietantemente na mata. Ao forçar a vista, achei que pudesse ser um tipo de cachorro de pernas compridas, procurando algo com o focinho. Mas, a mim, era certo de que toda essa situação fosse fantasia, e tão logo não hesitei em pensar que se tratasse, na verdade, do gato de botas, porque era o que, a princípio, parecia mesmo. Ao menos de longe. O bicho tinha a pelagem toda avermelhada, só que as patas eram pretas. Não era um gato, no entanto; e, sim, um lobo, bem diferente do que estou acostumada a não ver. Não ria disso, ok? É que nunca vi um lobo na vida, de pertinho, sabe. O primeiro foi assim: bem ruivinho.

Tudo o que ele fazia era cheirar e cheirar. Talvez estivesse tão somente procurando alimento. E depois de tanto tempo “procurando”, naquele vasto campo, o lobo vermelho resolveu partir. E eu achando que já estivesse na hora de me voltar pra aqui, mas acabei descobrindo, tão sem querer, que eu poderia acompanhá-lo em sua trajetória lupina.

Incríveis a sina e o seu interminável costume de cheirar tudo e tanto a todo instante. Não deixa de ser uma forma especial de aproveitar os pormenores do momento... Às vezes, ele parava pra comer ou beber água por aí. Tive a ousada morbidez de acompanhar minuciosamente o bichano rasgando e devorando um pobre tatu, que lhe cruzou o caminho.

Depois foi a vez duma galinha parda, abandonada, mirrada, porém o que mais me atraiu nessa história toda foi a sua determinação em não parar jamais. O lobo vermelho, diferente do que a gente costuma aprender sobre os outros lobos, não anda em bando. Ele era um solitário assumido, mas o mais interessante disso tudo é o que já disse: ele não parava nunca. Aliás, acho que essa seja uma das principais características dos solitários: eles nunca param. Só não sei te dizer por quê...

Bem, mas na prática, até que eu não sou tão sozinha assim. Tenho uma vida por aqui e, pra ser sincera, a essa altura, sinto que a vista está muito cansada. Ruim mesmo. Aliás, eu, de todo, estou muito cansada pra ir mais além. Também não quero correr o risco de ser devorada, mastigada; mas, se quer saber, acho que o lobo de hoje era brando demais pra isso, nem se quer parou pra me enfrentar. Não olhou em meus olhos em momento nenhum. Era tímido o coitado. Falando nisso, está mais do que na hora de eu encarar os fatos por aqui...

Veja: eu estou no banheiro agora. Estou desistindo desta travessia. Não posso atravessar mais com os meus frágeis olhos pra além deste espelho. Estou muito cansada e, só pra que você saiba, já tem gente à porta, querendo entrar. E que venha logo o inevitável habitual de sempre, porque, neste momento, eu sei o quanto é duro, talvez impossível, alcançar o lobo que percorre por estes espaços infindos e abertos. Os cerrados...

Está bem na hora de despertar, eu sei, levantar e caminhar. Seguir em frente. Por aqui, se caminha com pausas, mas, minha nossa, são tantas pausas, que até se faz esgotar o desejo natural de seguir adiante. E por aqui, sobretudo, cerrados são os percursos aos que só sonham, na melancolia do sonhar, em simplesmente, sozinhos, caminhar.

Fim